O sol começou a desaparecer por detrás do cabeço da Hera. Não soprava uma aragem. Da varanda da adega, olhávamos São Jorge, tentanto, descortinar um barco, uma traineira, uma lancha de pesca, uma embarcação que fosse, para nos transportar a outros mundos.
Os aviões já não riscavam o céu com duas linhas paralelas, que logo se esfumavam.
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E, aos poucos, as luzes acendiam-se na penumbra das Fajãs de São João e dos Vimes. No cimo da Ilha, um automóvel sinalizava a sua presença, à saída de São Tomé. Junto de nós, um coro de melros, em galanteios amorosos, tomava o regresso a casa ao fim de mais um dia.
De repente, faltou a luz, no caminho e nas casas. Gerou-se um burburinho. Tens luz na adega? - perguntei ao vizinho – eu também não. Que será que aconteceu? Ninguém sabia explicar. São Jorge estava iluminada e na Terceira já se vislumbrava, com nitidez estival, a iluminação pública de São Mateus às Doze Ribeiras.
Não se percebe como é que aqui no Pico, com tantos investimentos na central térmica de São Roque, acontece isto com frequência – dizia o Tó Manel. E veio à baila a situação incompreensível, que a EDA teima em não resolver, da casa do João Candelária, infelizmente muito doente, que reclama por um fio de luz, há anos e anos, ali a cerca de 200 metros. Bem dizia ele, quando abordei o assunto, há dois anos, que não acreditava na EDA. Se fossemos ricos e soubéssemos falar, já sabe! agente já tinha luz na adega! – protestavaa Rosarinho perante a resignação do marido.
A noite caía calma e silenciosa. Pelo escuro descobria-se, na limpidez do céu, alguns satélites que, na sua volta à terra, passavam apressados.
O Tó Manel, lembrou-se, então, de animar a noite. Quebrando o silêncio, soprou um búzio com um toque demorado e desafiou os vizinhos. A resposta não se fez esperar. Durante algum tempo soaram as vozes dos búzios, dos balcões das adegas, lembrando aos vizinhos os serões de outrora.
Nesses tempos- já lá vão cinquenta anos!-, reunia-se a família no balcão: o pai sentado na cadeira de balanço, a mãe tocando guitarra ou cavaquinho e os filhos, no muro, cantavam, alegremente, “que noite serena, que lindo luar, que linda barquinha, que eu vejo no mar...”. Do vasto repertório, que se repetia dia-após-dia, constava também A canção russa, (Sobre o mar em voz sentida,/ eu te invoco, com amor,/ terra minha tão querida,/ jardim lindo encantador.), que meu pai interpretava com grande emoção. As vozes e os acordes da numerosa família chegavam longe, ao alto da freguesia, levados pela brisa das noites de Julho e Agosto, disse-me, mais tarde, a Sra Olinda do Feijoco que, na adega da Engrade, assava uns chicharros com um molho crú, que nunca mais saboreei.
Quando a luz chegou, mais de uma hora depois, sentados na varanda, tínhamos revisitado momentos inesquecíveis e tantas pessoas queridas. Apeteceu-nos, por isso, apagar a luz e ficar ali, descobrindo o firmamento e chorando tempos que não mais voltarão...
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